A missão de transportar vidas, de uma ponta a outra do país, hoje está rodeada de conforto, segurança e facilidades. Mas, nem sempre foi assim. Estamos falando do segmento de transporte rodoviário coletivo de passageiros interestaduais, que opera com, aproximadamente, 240 empresas homologadas pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) para o serviço regular, e gera mais de 60 mil empregos diretos e outros milhares indiretos.
Na década de 1940, quando o Brasil enfrentou grave crise de desabastecimento de combustíveis, empresas de ônibus rodoviários se adaptaram ao uso do álcool, muito antes do etanol chegar às bombas de postos de combustíveis. Outras tantas superaram adversidades nas estradas de barro e até abordagens de índios no transporte de passageiros. Assim, o Brasil de ônibus evoluiu, vencendo dificuldades que impulsionaram o modal.
A evolução trouxe novos desafios para o serviço público que atende com regularidade mais de cinco mil municípios brasileiros. Só que agora estão ainda mais complexos, porque ameaçam garantias adquiridas ao longo dos últimos 25 anos. Põem em risco investimentos em tecnologia, na manutenção de empregos estáveis e geram insegurança jurídica para um modelo de negócios desenhado e regulado pelo poder público.
Agora não são as estradas sem infraestrutura a desafiar o setor. É o Estado que estimula a abertura de mercado e a política liberal para, teoricamente, aumentar a oferta do serviço, elevar a concorrência e reduzir tarifas. É o Governo quem muda as regras de um setor que transporta, diariamente, 50 milhões de passageiros, com investimentos em infraestrutura e pessoal qualificado, sem levar em consideração que o aumento da oferta de serviço ocorrerá apenas nas linhas rentáveis, pois as de menor demanda (não rentáveis), tenderão a desaparecer, deixando usuários de várias cidades brasileiras desassistidos.
É preciso que se respeite a história de pioneiros que desbravaram estradas para atender as rotas de longa distância, favorecendo a migração regional de milhares de passageiros em busca de trabalho. Também não é justo desprezar a evolução do serviço, com a adaptação dos veículos às viagens longas, desde a criação do serviço semileito e leito ao desenvolvimento do turismo rodoviário e o investimento em sustentabilidade, privilegiando a fabricação de ônibus que cumprem as metas de redução de óxido de nitrogênio, como vem ocorrendo desde 2012.
Ainda é preciso que se registre a adaptação das empresas reguladas aos desafios da tecnologia digital. Souberam manter equilíbrio entre lojas físicas e e-commerce, mantiveram e multiplicaram empregos para motoristas, agentes de venda, bagagistas, despachantes de plataforma e para outras categorias afins. Fizeram tudo isso, mesmo diante das fragilidades da adequação ao mercado de trabalho que vive a transformação digital numa velocidade nem sempre apropriada aos vários profissionais.
Infelizmente, as desvantagens da desregulamentação do serviço de ônibus interestadual só virão à tona quando afetarem drasticamente a qualidade ofertada, com a viabilidade do negócio amparada apenas na busca por menor preço.
A segurança também não será privilegiada nesse cenário, em nome da redução de custos. Ao contrário, a formação e o treinamento de motoristas requerem vultosos investimentos por parte das empresas, o que não será necessário em ambiente de total liberdade.
O lamentável é que no atual cenário de crise econômica há ingredientes suficientes para que a combinação de regras claras para todos, sem amarras regulatórias e livre mercado resulte em um tiro que sairá pela culatra.
Letícia Pineschi Kitagawa
Conselheira da ABRATI – Associação Brasileira das Empresas de Transporte Terrestre de Passageiros